sexta-feira, 27 de abril de 2012

Coração De Outono - Capítulo 5 - Memórias.

(Contado por Aiyra)

Eu não aguentava mais ficar esperando pelo Pedro. Ele demorava demais pra chegar, a hora do almoço se aproximava, e eu começava a ficar com fome. Ficar ali na rua do colégio, sozinha, também não era uma boa ideia. E além do mais, voltar andando pra casa não seria tão ruim assim. Aproveitaria pra decorar o percurso e pensar um pouco na vida.
Coloquei os fones, selecionei algumas músicas e deixei-o volume no máximo. Fui andando sem prestar muita atenção ao redor. Parei um instante em frente a uma livraria, e entrei logo em seguida. Caminhei por entre os corredores cheios de livros, procurando por algo que me chamasse atenção e me fizesse perder algumas horas do dia lendo uma boa história. Acabei encontrando um romance, e decidi leva-lo por falta de opção mesmo.
Devo ter demorado de quinze a vinte minutos para chegar em casa, pois entrei numas ruas erradas e me perdi. Toquei a campainha e fiquei aguardando. Havia esquecido de novo a chave. Quem atendeu foi a empregada, a única pessoa com quem converso civilizadamente aqui. Subi os quatro primeiros degraus, e ouvi o Pedro me chamar.

- Está gostando do colégio? – pergunta sorrindo.
- Não é tão ruim assim, mas eu não tenho outra escolha a não ser ir pra lá, não é?
- Você vai se acostumar.
- Tanto faz. – lhe dei as costas e terminei de subir os degraus.

No quarto, larguei a mochila no chão e me deitei na cama. Fechei os olhos, e desejei poder voltar no tempo por um momento. A minha vida não era uma das melhores, mas eu não me importava. Conseguia viver “tranquilamente” e sem reclamar muito. Mas agora as coisas mudaram, e mudaram muito.
Os acontecimentos das últimas horas também eram revividos em minha mente, o que me fazia pensar sobre o que eu estava fazendo ali. Algo em especial, ou pra ser mais exato, um nome em especial ficou gravado na minha memória. Reabri os olhos.

- Bill. – disse, soltando uma leve risada. – Então quer dizer que este é o nome daquele otário?!
- Quem é Bill?

Me levantei e vi a Anna parada aos pés da cama, com seu inseparável ursinho. Sua mania de entrar no quarto sem fazer o menor barulho, ou sem ser convidada, me irritava. Eu gosto e preciso da minha privacidade, mas não estou conseguindo isso aqui nessa casa. A porta do quarto não tem chave, então ela basicamente tem passe livre.

- Não é ninguém que interesse a você. – disse. – O que está fazendo aqui? – me levantei.
- A mamãe pediu pra eu avisar que o almoço está pronto.
- O recado foi dado, agora já pode ir. – a levei até a porta, e fechei a mesma.

Eu não gostava muito de ter que bancar a filha boazinha da família perfeita, mas a fome falava mais alto. Almoçar com esse pessoal é uma chatice, e não aguento mais ficar ouvindo a Clarisse comentar sobre seu ateliê de costura para noivas. Sem contar que o Pedro também adorava falar de sua empresa de carros importados.
Antes de descer, fui para banheiro e tomei um banho refrescante que levou cerca de vinte minutos. Pus um vestido de tecido leve, passei rímel e perfume. Só então fui me juntar aos outros. Era tudo tão certinho. Os talheres ficavam posicionados impecavelmente, a louça era sofisticada, e tinha até um lenço para ser colocado sobre o colo. É muita frescura para pouco eu.
O fato de estarmos todos calados não me incomodava nem um pouco, já que eu não fazia a menor questão de trocar qualquer tipo de palavra com eles.

- Querido, estou pensando em matricular a Anna no curso de desenho. – diz Clarisse.
- E a Anna quer? – pergunta ele. – Porque não quero que ela faça nada contra sua vontade.
- Ela vai querer.
- Vamos fazer o seguinte, amanhã a levarei para assistir uma aula, e se ela gostar eu faço a matricula.

A menina tem seis anos e faz mais cursos que um adulto. Ela não tem um dia se quer de folga. Sabe falar inglês, alemão, e agora aprende francês. Faz aula de balé, piano, violão e equitação. Pra mim isso tudo é exagero. Onde é que fica a infância dela? Ela não deveria estar brincando na terra como qualquer outra criança de sua idade? Não deveria ter umas amiguinhas e ser levada ao parque de vez em quando?
Quando eu era mais nova, adorava acompanhar o Pedro até o porão, onde ele fazia paisagens incríveis nas telas brancas. E ele ter dito que levaria a Anna pra assistir uma aula de desenho, me fez lembrar a primeira vez que fui a uma escola de artes.

(Flashback)

Eu praticamente cochilava em cima do sofá velho do porão, ouvindo uma música lenta e relaxante. A minha mãe estava no trabalho e eu havia chegado mais cedo do colégio, por estar com um pouco de febre. Enquanto isso, ele aproveitava para me pintar.

- Está se sentindo melhor, querida? – perguntou, parando a pintura e vindo passar a mão delicadamente pelo meu cabelo. Assenti positivamente com a cabeça. – O papai vai buscar seu remédio. Não saia dai, que eu já volto, tá? – novamente balancei a cabeça.

Pouco depois ele reaparece com um frasco pequeno em mãos. Eu amava aquele remédio, pelo fato de ser bem docinho. Poderia ficar doente até de propósito só para ter o prazer de sentir aquele gostinho de chiclete.

- Papai, me ensina a pintar como você? – pedi.
- Quer mesmo aprender a pintar? – um sorriso surgiu nos seus lábios.
- Quero.
- Então vamos fazer o seguinte, amanhã te levo pra assistir uma aula, e se você gostar, faço sua matricula.

Naquela mesma tarde ele tentou me ensinar algumas coisas, e me senti a pessoa mais feliz do mundo. No dia seguinte, quando estava melhor, visitamos a escola de artes e me apaixonei pela maneira como os futuros artistas manuseavam os pincéis. Eram pinturas incríveis que faria qualquer um viajar para um lugar imaginário dentro da mente. Mas optei pelo desenho e não a pintura.

(/Flashback)

O meu devaneio foi interrompido quando, a empregada retirou os pratos e trouxe a minha sobremesa favorita: bolo de chocolate com recheio de mousse de maracujá. Você pecava só de olhar e quanto mais comia, mais dava vontade de comer.

- O que acham de jantarmos fora essa noite? – Clarisse sugere, tentando quebrar o gelo. – Um restaurante italiano foi inaugurado há pouco tempo aqui perto, e ouvi dizer que é muito bom.
- Esta sim é uma boa ideia. – diz Pedro, comendo um pedaço do bolo. – O que acha disso, meu anjo? – me olha.
- Primeiro que, não sou seu anjo. – disse. – Segundo, odeio comida italiana. – menti.
- Desde quando? – pergunta-me. – Você adorava comida italiana.
- As pessoas mudam.
- Tá legal. – Clarisse se intromete. – Podemos ir a outro lugar, se preferir. – tentava quebrar aquele iceberg.
- Tenho coisas mais interessantes pra fazer. – respondi. – E sinceramente, prefiro ficar trancada no quarto, a sair com vocês. – me levantei e sai.

A sobremesa nem ao menos tinha acabado e tive que abandoná-la. Retornei ao quarto, me deitando na cama e dormindo o restante da tarde.

***

Acordei, apalpei a mesinha de cabeceira e peguei meu celular para verificar a hora: 17h45. Só me levantei, porque me lembrei do livro que eu havia pegado na biblioteca, e aquela seria uma boa hora para começar a ler. Logo nas primeiras páginas, achei interessante e já percebi que iria perder muito tempo só lendo-o.
Mais tarde, fiquei apenas deitada no chão de barriga para cima, olhando para o teto e não pensando em nada. Notei que a porta do quarto foi aberta, e pelo ângulo que eu estava dava para ver a pessoa de cabeça para baixo. Como sempre e não me surpreendendo mais, era a Anna.

- O que está fazendo? – pergunta ela.
- Pensando. – ela se deita ao meu lado. – E você, o que está fazendo?
- Acho que também estou pensando.

Eu poderia contar no relógio quantos segundos ela ficou calada, mas não deu, porque logo estava falando outra vez.

- Posso fazer uma pergunta?
- Sim. –disse.
- No que estamos pensando?
- No quanto a vida é injusta. – olhei pra ela.

Pouco depois a Clarisse aparece e chama pela filha, alegando estar tarde para ela dormir. Eu continuei ali até minhas costas começarem a doer. Fiquei com fome outra vez, e como parte das pessoas estava dormindo, resolvi ir até a cozinha. Achei meio estranho ver a casa com todas as luzes apagadas àquela hora, mas pelo menos eu teria um pouco de tranquilidade e ficaria sozinha por mais um tempo.
Ao chegar à cozinha, me surpreendi com o Pedro sentado num banquinho próximo ao balcão, comendo uma fatia consideravelmente grande daquele bolo de chocolate. Se não me falha a memória, ele costumava fazer isso praticamente todas as noites, quando ainda morava conosco. Só não sabia que seus hábitos permaneceram. Iria dar meia volta, e deixar pra comer um pouco mais tarde.

- Espera. – diz ele, pegando uma colher que estava por perto. – Eu não vou conseguir comer isso tudo sozinho mesmo. – fiquei em dúvida sem saber se deveria ou não aceitar, mas no fim acabei cedendo e me sentei de frente para ele. - Soube que ficou em primeiro lugar num concurso de desenho. – o olhei.
- Isso foi há cinco anos.
- Mas continua desenhando, não é?
- Não. – comi mais um pedaço do bolo. – Minha inspiração me deixou, e agora não há mais motivos pra continuar.
- Eu sinto muito. – ele abaixa a cabeça. – Sinto muito mesmo, por tudo que causei a você. Eu não...
- Vou dormir. – o interrompi, e larguei a colher. – Amanhã cedo tem aula, e não dá pra dormir muito tarde.

Só de ouvi-lo falar daquele jeito, me deu vontade de chorar. As memórias começariam a reviver, e eu não conseguiria me controlar. Sei disso, porque as minhas lágrimas raramente podem ser controladas. Nem que eu respirasse fundo, ou olhasse para cima. Levantei-me, e bastou lhe dar as costas para as malditas escorrerem pelo meu rosto.

Postado por: Grasiele

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